Nas memórias recentes norte-americanas, John McCain destacou-se como uma das figuras mais reconhecidas do país, um acto resultante da Guerra de Vietname. McCain foi um prisioneiro nessa guerra durante seis anos (1967 e 1973), quando o seu avião militar foi abatido sobre a cidade de Hanói. Esse estatuto de prisioneiro fez de McCain um herói nacional dos Estados Unidos da América.
Mais tarde, McCain teve uma brilhante carreira política como Senador pelo estado de Arizona (por mais de 30 anos), para além de ter sido um candidato presidencial por parte do Partido Republicano, entretanto, derrotado por Barack Obama em 2008.
McCain serviu na Guerra de Vietname com mais outros 2.5 milhões de norte-americanos, numa das guerras mais fratricidas para os EUA. Os leitores desta publicação podem também lembrar-se de uma outra figura, na pessoa de John Kerry, também um antigo candidato presidencial, presentemente a ocupar o lugar de Enviado Especial do Presidente Biden para os assuntos climáticos. Kerry é considerado um herói da Guerra de Vietname, tendo recebido várias medalhas de combate, incluindo a Estrela de Prata, Estrela de Bronze e três Corações Púrpuras.
Apesar das frustrações dos militares norte-americanos (quanto à estratégia da guerra) e dos populares (sobre a sua justificação), a América nunca retirou o heroísmo aos seus combatentes na “injusta” Guerra de Vietname. Porquê? Porque John McCain, John Kerry e outros tantos milhões de norte-americanos estiveram a servir a nação americana e a sua bandeira, independentemente da justeza ou não dessa guerra. Até hoje, John McCain e John Kerry continuam a ser heróis indiscutíveis da nação norte-americana.
No caso de Portugal, no auge da sua guerra colonial em África (1961-1973), durante a chamada “africanização” das Forças Armadas Portuguesas, mais de 400 mil africanos estavam a servir nas FAP, entre um total de aproximadamente 1 milhão e 400 mil soldados. Independentemente das suas origens, cada um desses soldados esteve a servir o Estado português e a bandeira de Portugal – voluntária ou involuntariamente – sobretudo depois da abolição do Estatuto Político, Civil e Criminal dos Indígenas em 1961. Esse acto permitiu o tratamento igual de todos (portugueses e africanos), independentemente da origem, cultura ou religião de cada um.
Sabemos o resto da história. Portugal perdeu as suas guerras coloniais – teórica ou praticamente, dependendo de quem faz o argumento. Mas, também é sabido que muitos desses soldados portugueses (das ex-colónias e da metrópole) foram agraciados com as mais altas condecorações do Exército de Portugal.
Todavia, só porque o Portugal perdera as suas guerras na Guiné/Cabo Verde e noutras suas ex-colónias africanas, não significa que os portugueses de hoje devem diabolizar àqueles que ontem serviram a bandeira lusitana, assumindo todos os riscos inerentes à uma guerra militar — e sob o comando de Portugal.
Aliás, no caso da Guiné, a ideia da progressiva substituição das tropas da metrópole com os destacamentos africanos, incluindo os comandos, era de próprio António Sebastião Ribeiro de Spínola, de acordo com os arquivos da Defesa Nacional portuguesa. Será Spínola, o ex-presidente de Portugal e um oficial militar, um criminoso da guerra? Será o General António dos Santos Ramalho Eanes, o ex-presidente de Portugal, também um criminoso da guerra?
Sei que o tenente-coronel Marcelino da Mata não ganhou o seu estatuto e a sua fama por ter sido um “Santo” nas frentes de batalha. Mas, qual outro militar português (ou dos movimentos de libertação) que pode reclamar o estatuto de “santidade” durante as guerras de ocupação/libertação mais sangrentas em África?
A interrogação anterior leva-me a concluir que é mais fácil diabolizar o tenente-coronel Marcelino da Mata por se tratar pura e simplesmente de um nativo africano (nascido na Guiné), mesmo sendo o militar mais condecorado na história de Portugal.
O que não entendo, no entanto, é se essa diabolização trata-se apenas de uma distracção, de uma tentativa de lhe retirar o lugar e o mérito na história de Portugal, ou de uma pura manifestação racial contra um africano.
Todavia, cabe aos portugueses debater se devem reconhecer os seus heróis ou não. Mas, eu, sendo uma pessoa que vos é ligada através de uma história comum e até “criminosa”, cabe-me apenas lembrar-vos que milhares de ex-soldados africanos desmobilizados foram perseguidos, presos, exilados e fuzilados na Guiné-Bissau (e noutras partes do continente) por se terem lutado “criminosamente” (e inocentemente) sob à bandeira de Portugal que vocês, or portugueses, se orgulham tanto, e reconhecidamente. Uma nação portuguesa que — criminosamente ou não — Marcelino da Mata ajudou a construir com o seu suor e com o sangue (e invalidez) de milhares doutros combatentes africanos desconhecidos, esquecidos e negligenciados, até hoje, apesar do estipulado nos artigos 25˚ e 26˚ do anexo ao Acordo de Argel, de 26 de Agosto de 1974.
–Mestre Umaro Djau
22 de Fevereiro de 2021