Um dedo de conversa do quintal
O conceito de herói, normalmente é atribuído aos combatentes armados, Matchos, gente ousada, que dirigiram grandes ações militares da epopeia da luta. Essa percepção, embora hegemônica, no caso guineense, não abrange figuras como Engenheiro Carlos Correia. Por vários motivos: ele nunca foi um combatente armado, porque havia frentes diversas de combate. Uns chamam de luta, outros de guerra de guerrilha.
Essa colocação é apenas para introduzir a figura do Engenheiro Carlos Correia, que na época era funcionário duma casa comercial colonial em Bissau, e quis a história que combatesse politicamente e ideologicamente contra a presença colonial.
A referência a essa colocação tem a ver com a conversa que mantivemos entre mim e ele em sua casa, em frente ao Estádio Lino Correia, aquando da minha pesquisa de campo para conclusão do curso de mestrado. A sua humildade, sinceridade, modéstia e sentido de responsabilidade, ficaram patentes logo que dirigia à sua residência e pedi a um senhor sentado no portão de sua casa que avisasse o Engenheiro que tem um jovem que queria falar com ele por que eu estava a desenvolver uma investigação sobre a “Sociedade Civil e Democratização na Guiné-Bissau”.
De repente saiu um senhor alto, forte e de olhar atento, rapidamente mandou-me entrar, enquanto eu entrava ele dirigiu-se à geladeira e serviu-me um suco (sumo de cabaceira). Fomos sentar no quintal, bem acomodados, falei da investigação e pedi uma entrevista. O ambiente era muito agradável, não me parecia à imagem que se tinha de um “dirigente do PAIGC”, normalmente poucos acessíveis.
Do nosso encontro, que ele fez questão de relatar em detalhes, e com uma cumplicidade muito forte entre nós, eu retive duas observações, uma sobre a formação das lideranças guineenses do PAIGC, outra sobre a sua figura e a sociedade guineense. No primeiro caso, falou-me pausadamente sobre a figura de Rafael Barbosa, antigo militante e dirigente do PAIGC, que se notabilizou como mobilizador de vários jovens urbanos, principalmente da chamada Zona Zero. É uma figura de cuja origem familiar o próprio Carlos Correia, já idoso, desconhecia, a qual, recentemente tomou conhecimento à época.
A surpresa dele era a de saber que o pai de Rafael Barbosa era cabo-verdiano, de Santiago. Isso revela o vinculo entre os dois países, de cuja dimensão, infelizmente, ainda permanece desconhecida. Esse aspecto relativiza e agrega a historiografia sobre o nacionalismo guineense, incluíndo sua relação com a sub-região ocidental africana. Questão que merece aprofundamento para o conhecimento historiográfico do país, ainda em construção, em seus múltiplos aspectos.
Outra observação à qual falamos muito tem a ver com a figura do próprio Engenheiro Carlos Correia, enquanto homem do Estado. Ou seja, indaguei ao Engenheiro sobre a importância da ética pública decorrente do alto nível de roubo de recursos públicos para fins individuais, isto é se realmente ele devolvia o dinheiro público do estado sempre que regressava em missões de serviços no exterior. No alto da sua modéstia, com a força do seu caráter, disse-me, meu filho, “há um pouco de exagero nisto, mas tudo bem”.
Em relação à Guiné-Bissau, quando voltei ao país para minha investigação de Tese Doutoral, voltamos a conversar sobre o país, sempre em sua casa, no quintal, sentados à volta de uma mesa de madeira, bem no canto, logo a seguir à parta. Estava ele muito entusiasmado com alguns sinais positivos que se vivia durante o governo de Carlos Gomes Júnior. Ele acreditava que a Guiné-Bissau podia, à época, começar a escrever uma nova história, bem distinta àquela de sucessivos golpes e improbidade pública praticada por agentes de estado. Era espetável. Não era de estranhar, porque havia um coro nacional que rimava com o entusiasmo do Engenheiro Carlos Correia.
É esse entusiasmo devido à força do seu caráter de um homem simples, produto de um esforço coletivo e distinto, que recordo da conversa que mantive com ele, inda em vida, debaixo de uma arvore no quintal de um combatente modesto, que faz da ética da vida o pomar de unriques de esperança, de djuntamon, que alegra o coração do Engenheiro Carlos Correia e da Mama Guiné.
A juventude precisa de figuras como a do Engenheiro Carlos Correia, modestamente descomplicado, eticamente descomplexado. Um homem que repudiou a riqueza fácil. Um homem viveu a vida toda no seu torrão, Guiné. Um homem que não possui apartamento nem em Lisboa, nem em Paris, nem nos Estados Unidos, ou no Brasil. Um homem que viveu para política, com a política, enquanto político, sem a violência, em um diálogo exemplar com um guineense “fidju dibidera”, como muitos de nós.
Adeus Engenhiro que tanto persuadiu-me muito para que eu filiasse ao PAIGC, como militante, à semelhança do pedido feito por personalidade em vida, como Francisca Pereira, quem trata-me por “menino do Brasil”; da Iva Cabral e muitas outras indiviadualidades do partido; lamento por não conseguir seguir a orientação daquele que me considerava um Filho, seu Engenheiro Carlos Correia.
Vá em paz
Que alzamas estejam contigo
Chegará bem
Bem recebido
No quintal do Senhor
DUMAS, Brasil, 14.08.2021