Depois de 16 anos como vice-presidente, Bubacar Turé foi finalmente eleito presidente da Liga Guineense dos Direitos Humanos (LGDH). A organização da Sociedade Civil mais estável de todos os tempos, ganhou neste momento uma liderança de carreira. Bubacar Turé, vai dirigir uma organização embora “estável” mas com muitos desafios pela frente. A primeira prioridade é a reorganização interna e concretização do Plano Estratégico a favor dos direitos humanos. Desta vez, os desafios sociais, económicos e culturais, vão dominar a agenda da Liga. Mas, os desafios correntes merecerão também uma atenção particular até porque, são graves. Na entrevista concedida ao Última Hora (UH) dias depois da sua eleição, Bubacar Turé foi peremptório: “a situação dos direitos humanos na Guiné-Bissau está caótica”, disse. E acrescentou: “estamos a chegar o ponto de não retorno”. O seu medo maior, como confessou e, que fará a Liga continuar a sua luta é, “a sensação de existência de plano para desmantelar o Estado de direito no país”.
Última Hora (UH) – Dr. Bubacar Turé, acabou de ser eleito presidente da LGDH, uma organização que existe há mais de 30 anos e que tem superado muitos desafios de ‘descrédito das instituições’ a nível nacional. O que é que motivou a sua candidatura?
Bubacar Turé (BT) – A minha candidatura foi motivada essencialmente pelo desejo de servir a Liga e ajudar a promover e proteger os direitos humanos na Guiné-Bissau. Sou ativista desta grande organização há mais de 20 anos. Nesta qualidade, ocupei várias funções desde as estruturas de base até ao topo. Aliás, sou o único na história de 32 anos da LGDH, que ocupou as funções do Vice-Presidente durante 16 anos. Mesmo quando comecei a trabalhar nas Nações Unidas em 2009, nunca afastei-me da Liga, sempre cumpri as minhas tarefas no seio da organização sem qualquer constrangimento. Contudo, nunca tive pressa para assumir qualquer função, acompanhei três Presidentes, o Sr. Ezequiel da Silva, os Drs. Luís Vaz Martins e Augusto Mário da Silva. O primeiro era presidente interino, os dois últimos cumpriram dois mandatos consecutivos. Após uma reflexão profunda, entendi que chegou o momento de avançar para assumir a liderança da organização e por em prática algumas ideias e projetos que ficaram pelo caminho.
UH – Como é que a Liga conseguiu resistir ao longo destes anos?
BT – Foi extremamente difícil. Quando herdamos a Liga em 2006, estava devastada de graves crises internas que levaram os seus parceiros internacionais a suspender os financiamentos. Não havia dinheiro para pagar as rendas, muito menos pagar funcionárias de limpeza, lembro-me ter assumido este papel durante algum tempo, quase ia comprometer os meus estudos na Faculdade de Direito de Bissau.
Ou seja, tivemos que lidar vários problemas, de um lado, era a própria organização que não tinha condições mínimas para funcionar, de outro lado, era o país que se mergulhava de crise em crise, algumas extremamente violentas e que exigiam intervenções da Liga. Foram tantas vezes que os seus dirigentes foram presos, lembro-me quando o Presidente Koumba Yala mandou prender o Sr. os dirigentes da organização e ordenou o encerramento imediato das suas portas instrumentalizando o Ministério Público para o efeito. Foi o período mais negro da história da LGDH. Ninguém esperava que a organização ia superar esta fase. No entanto, a determinação e resiliência que sempre caraterizou a conduta dos seus dirigentes, ajudou a resgata-la e tornar ainda mais forte.
A liderança de Dr. Luís Vaz Martins foi crucial e determinante, permitiu fazer reformas internas e acabou com as cíclicas crises internas. Foi nesta altura que surgiu a ideia da criação da Casa dos Direitos, um emblemático projeto da ACEP – Associação para a Cooperação Entre os Povos, dirigida pela Srª. Fátima Proença, uma mulher que a Guiné-Bissau deve muito e deve no mínimo homenageá-la com uma medalha oficial do Estado pelos relevantes serviços prestados à nação.
UH – Como Presidente, herdou muita coisa. O que é que gostava de destacar e quais as mudanças que pretende imprimir?
BT – Herdei muitas coisas bons e alguns nem tanto, mas a vida é feita assim, por isso nem vou falar das menos boas. Entre as coisas boas, temos hoje uma Liga muito forte, cheia de ânimos e energias dos seus ativistas e dirigentes. Estamos a implementar um importante projeto denominado “Observatório da Paz – Nô Cujdi Paz em parceria com o Instituto de Marquês Valle de Flôr, com a finalidade de prevenir o radicalismo e extremismo violento, do qual sou o Coordenador. Tem sido uma experiência interessante, acho que é uma das maiores marcas da liderança de Dr. Augusto Mário da Silva.
No que concerne as prioridades para o futuro, vamos ter de reorganizar as nossas estruturas em todo o território nacional, adoptando-as de meios e capacidades técnicas para enfrentar atuais desafios de proteção dos direitos humanos. Igualmente, pretendo desencadear uma “diplomacia agressiva” junto dos parceiros internacionais para alargar as oportunidades de financiamento. A imagem e reputação da Liga contrasta com a sua almofada financeira, isso tem de mudar, caso contrário, não poderá cumprir cabalmente a sua missão. Igualmente, iremos dar uma atenção especial a proteção das diferentes categorias de direitos humanos, nomeadamente, os direitos económicos, sociais e culturais. Os serviços sociais básicos, tais como educação e saúde, estão a beira de colapso e, é preciso agir urgentemente. O assunto de igualdade de oportunidades entre homens e as mulheres, em todas as esferas de tomada de decisão, terá uma atenção especial na direção que irei liderar. Para o efeito, no uso das minhas prerrogativas estatutárias, irei designar uma mulher como primeira Vice-Presidente.
UH – A conjuntura política do país acaba sempre por ser um dos desafios mais desafiantes da Liga denunciando violações e desrespeito. Ainda existe, ou desta vez a visão será outra?
BT – Na realidade, as violações e atropelos à ordem jurídica são tantos ao ponto de condicionar a nossa agenda. Contudo, vamos tentar inverter esta tendência, a Liga irá dispor de uma agenda própria com base no plano estratégico e operacional da organização para os próximos anos. O país está muito mal e é preciso agir com serenidade para resgatá-lo.
UH – Neste momento existem muitos desafios ligados a violação dos direitos humanos e a justiça. Pessoas detidas sem acesso a justiça. Pensa abordar estes casos com as autoridades?
BT – Conforme disse, a Guiné-Bissau vive numa situação extremamente complexa, temos 36 cidadãos detidas e acusadas de suposto envolvimento no caso de 01 de fevereiro, há cerca de dois anos, sem nenhuma sentença condenatória. Duas destas pessoas se encontram gravemente doentes e internadas no hospital militar já há muito tempo. Temos acesso à várias decisões judiciais que ordenaram a libertação imediata de alguns dos detidos, mas infelizmente, estas decisões foram ignoradas pelo regime instalado, numa clara violação do princípio de separação de poderes. Igualmente, esta recusa sistemática do regime de se submeter às decisões judiciais, consubstancia numa afronta ao Estado de direito. Por isso, aproveito mais uma vez para exigir a libertação imediata de todos estes cidadãos sequestrados pelo Estado da Guiné-Bissau.
UH – A curto prazo, quais são os desafios prioritários?
BT – A curto prazo, temos de reorganizar a casa. Vou constituir a minha direção que tomará posse em Janeiro. Neste mesmo mês iremos divulgar o nosso relatório sobre a situação dos direitos humanos na Guiné-Bissau de 2020 à 2022, cuja publicação estava prevista para este ano mas foi protelada para janeiro por causa dos acontecimentos de 01 de Dezembro. Trata-se de um extenso documento que faz uma análise crítica de factos reais que aconteceram nos últimos anos em todos os domínios de direitos humanos. Aproveito para agradecer o Camões – Instituto da Cooperação e da Língua que apoiou financeiramente a produção deste relatório no âmbito de um projeto de ACEP em parceria com a Liga. Após este ato, iremos iniciar o processo de reestruturação da LGDH para adequá-la aos atuais desafios contemporâneos de promoção e proteção dos direitos humanos. Este processo levará algum tempo mas vai fortalecer a nossa organização. Igualmente, iremos iniciar rapidamente, diálogo com diferentes órgãos de soberania em torno da situação dos direitos humanos, democracia e estado de direito, tendo em consideração que cabe ao Estado a responsabilidade primária de proteger a dignidade da pessoa humana. Na qualidade de membro observador junto da Comissão Africana dos Direitos Humanos e dos Povos, iremos apresentar um relatório sobre a situação dos direitos humanos na Guiné-Bissau na próxima reunião da Comissão provavelmente em Abril de 2024. Este ato visará interpelar a Comissão Africana dos Direitos Humanos e dos Povos para chamar à razão a Guiné-Bissau sobre o incumprimento da suas responsabilidades e obrigações internacionais nesta matéria.
UH – Como é que carateriza a situação dos direitos humanos hoje na Guiné-Bissau?
BT – A situação é caótica. Estamos quase a chegar ao ponto de não retorno. Os direitos humanos foram sempre violados na Guiné-Bissau, sobre isso não resta duvidas. No entanto, o ponto em que chegamos nos últimos anos é deveras preocupante. Assistimos nos últimos anos fenómenos desconhecidos na nossa realidade, refiro-me aos raptos e espancamentos das vozes incómodas, ataques terroristas contra os cidadãos, sem ignorar as intimidação dos cidadãos, detenções arbitrárias, jornalistas, ativistas políticos etc. Igualmente, parece-nos que há um plano para desmantelar o estado de direito no país. Repara que praticamente todos órgãos de soberania foram amordaçadas, as “ordens superiores” suplantaram a ordem jurídica.
No domínio de direitos económicos sociais e culturais, a situação é igualmente critica. Nos últimos anos a pobreza aumentou-se exponencialmente, em consequência da inflação galopante e ausência de medidas compensatórias, sem ignorar o falhanço das sucessivas campanhas de castanha de caju. Sem qualquer exagero, neste momento temos fome na Guiné-Bissau. Há centenas ou milhares de famílias que não têm de comer, mesmo nas zonas urbanas. As situações da educação e saúde são caóticas, requerem soluções urgentíssimas, sem deixar de referir das faltas de água potável, energia elétrica e infraestruturas.
Portanto, o contexto é extremamente perigosa e desfavorável aos direitos humanos. Nós enquanto principal organização de promoção e defesa dos direitos humanos, temos tentado sem sucesso inverter este quadro sombrio. Garanto-te que não vamos desistir. Iremos intensificar as nossas ações, a direção que vou liderar será muito interventiva em todas as dimensões dos direitos humanos, desde direitos, liberdades e garantias até direitos económicos sociais e culturais.
UH – Como sair desta situação?
BT – É uma situação difícil e complexa, mas tem solução. Há uma ordem jurídica que foi estabelecida através da nossa Constituição da República. Este magno documento, para além de ter densificado os direitos humanos, consagrou os princípios de separação de poderes e legalidade democrática, proclamou que a Guiné-Bissau é um Estado de direito democrático e, por conseguinte, todos sem exceção devem se submeter aos ditames lei. Não há lugar ao chefe único, as “ordens superiores” são inexistentes, não pode haver o absolutismo. Portanto, basta a observância destes princípios e valores a situação seria completamente diferente.
Mas também temos de perceber que sem estabilidade governativa não vamos a lado nenhum. Pelo contrário, corremos o risco de colapso. Não é possível conceber e implementar políticas públicas no domínio de direitos humanos, com governos de cinco meses, um ano ou dois anos. A instabilidade governativa motivada pela satisfação dos interesses egoístas de certos indivíduos e grupos, está a hipotecar o nosso futuro e o dos nossos filhos. Apesar das dificuldades, todos os países estão a avançar paulatinamente. Infelizmente, a Guiné-Bissau está estagnada, continuamos a remar em contramão do desenvolvimento. Em resumo continuamos a matar Amílcar Cabral todos os dias.
É preciso abandonarmos urgentemente lógicas de confrontações pessoais, debates fúteis em torno de acessórios. Temos de perceber que os países se desenvolvem com planos, políticas e estratégias concretas e previsíveis. Através destes documentos, é possível criar empregos, riquezas no país, reformar o estado, os sectores sociais nomeadamente a educação, saúde etc. Tudo isso só é possível com uma governação estável baseada na observância da legalidade.
Sabino Santos