O Presidente da ANP (momentos antes da instituição ser dissolvida pelo PR no dia 4 de Dezembro corrente) considerou de inconstitucional e abusiva a estratégia adoptada pelo Presidente da República na suposta crise provocada pela libertação dos dois governantes nas celas da Polícia Judiciária. Domingos Simões Pereira numa declaração que deveria servir de debate de urgência no Parlamento sobre a situação política do país, disse não compreender o que levou o Ministério Público a decretar a prisão do ministro das Finanças e o Secretário de Estado do Tesouro, quando estes manifestaram toda a disponibilidade em colaborar com a justiça. Sobre a dissolução do Parlamento, o presidente da ANP disse que, a oposição a maioria parlamentar já havia mostrado estes indícios, quando alguns deputados falavam em crise e pediam ao Presidente da República para assumir as suas responsabilidades. Contudo, Domingos Simões Pereira convidou aos deputados para deixarem o conformismo e defender a Constituição que claramente diz que, o Parlamento não pode ser dissolvido sem ter 12 meses de funcionamento.
Começando o seu discurso (escrito em português, mas lido em dialecto crioulo), Simões Pereira afirmou que, não sabe o que lhe pode acontecer hoje, porque tal como na quinta-feira passada a data presente aconteceram coisas em tão pouco tempo que se chega a ter medo da realidade.
Na integra, a Declaração:
Meus irmãos
Ao acordar hoje, não sabia bem, qual o caminho que o destino me iria impor, e o que iria ser o dia de hoje. Desde que saímos desta sala na quinta-feira passada, tanta coisa já mudou nas nossas vidas em tão pouco tempo que se chega a ter medo da realidade, por vezes mais espontânea do que sonho e a ficção.
Mas a própria experiência de vida me ensinou que a coragem e a dignidade nada têm a ver com a total ausência do medo. O digno e o corajoso simplesmente sabem quando podem ter medo. Na madrugada, de 1 de Dezembro, com as balas e explosões que invadiram o meu espaço de privação familiar, tive medo, mas foi de partir em silêncio, com a minha verdade.
Hoje, devo a mim e a todos esta fala, que depois de dita, me podem vir buscar, meter na cela mais funda e na mais sombria, porque então, o meu silêncio já falará mais bem alto do que qualquer texto que tivesse para ler ou dizer. Na madrugada que evoco, a Guiné-Bissau, principalmente os citadinos de Bissau, voltaram a viver momentos de enorme sobressalto, com acontecimentos que, pela sua estranheza e gravidade, concorrem com as mais dantescas da nossa já longa história de instabilidade política social.
Voltaram a ouvir-se tiros, houve feridos, houve mortes, houve sofrimento e muita tristeza e, no rescaldo de tudo isso, aqui estamos nós, investidos na condição de representante do povo e com a obrigação de entender e explicar o que aconteceu.
Irmãos, tudo começou com uma denúncia em uma folha de papel, que indicou crime, por parte de membros do Governo suportado pela maioria que constitui esta câmara parlamentar. Chamamos o ministro a depor e a nos esclarecer o ocorrido e, concordamos em acompanhar esse processo, através da nossa Comissão Especializada. Não por uma Comissão de Inquérito parlamentar, presumivelmente para não comprometer nem interferir com a investigação lançada pelo Ministério Público.
A ANP deu essa anuência acreditando na escassa, mas relevante esperança de o Ministério Público pretender a colaboração institucional na favor de um pleno e inequívoco esclarecimento do povo guineense. Eis que, antes que tal se fizesse possível, todos surpreendidos com a decisão dessa instância do poder judicial de silenciar os governantes decretando a sua prisão.
A surpresa, e a sensação de injustiça, por tratamento desigual, já que os outros ministros antes tiveram a mesma atitude, utilizando as mesmas regras, os mesmos procedimentos, das mesmíssimas leis, nos impediu a questionar os quês e não tantos porquês. Então esses seis biliões, de facto muito dinheiro para a nossa pobreza, eram maiores e mais prejudiciais de que os dos 9 dos pagamentos anteriores?
Como é que chegaremos a verdade com o silêncio dos dois cidadãos com mais informação sobre o caso? Como responder às outras questões que ainda faltam dizer?
O que é feito da isenção de taxas alfandegárias dadas ao mesmo comerciante para 50.000 toneladas de arroz e 30.000 toneladas de açúcar?
Como se explica que a Guiné-Bissau compre horas de voo em jatos de luxo para viagens do Presidente da República, com somas de milhões de euros?
Que contrato é esse de 13 biliões de Fcfa para empresa Haba Equipements para armamento,. tendo já pagado 10 biliões desse montante?
Que tipo de estrada se fez em Bissau Velho para custar 35 mil milhões – certamente as mais caras alguma vez construídas no mundo?
O ministro e o Secretário de Estado que muita falta ainda nos dão para compreender todo esse emaranhado de despesas e falcatruas, foram silenciados e por pouco não definitivamente.
Porque alguém decidiu pela sua libertação à força (o que condenamos sem reticências), mas curiosamente para os transferir de uma instalação sob tutela do Governo, não para casa, não para os fazer fugir, mas para os guardar em outra instalação do Governo e oferecer a oportunidade para a já há muito anunciada, legitimidade do Estado, e o rótulo de uma grave crise – era claramente a peça do puzzle que faltava.
quem nesta sala e dos que nos acompanham se terá esquecido das repetidas menções na semana passada sobre a iminência dessa ocorrência? O que nós, os menos rodados nesse jogo não conseguimos antecipar é que se pudesse incluir este cenário no rol de expedientes para o efeito. De repente, tudo encaixou, e o PR tem o direito de evocar golpe de Estado (a palavra mágica) e chamar a si todas as competências, tomar as medidas mais drásticas e, pelo caminho, enrolar ainda a todos os que ousam pensar em o contrariar.
Mas não, meus irmãos, as contas não batem certo desta forma.
Morreu gente no dia 1 de Dezembro e esse é mais um caso grave na nossa história que reclama o esclarecimento. O Presidente voltou ao país dizendo co9nhecer a verdade, dispor de provas – as torne públicas imediatamente, ou então, que deixe as instituições fazerem o seu trabalho e revelem a verdade ao povo guineense.
Não é por via de palavrões, insultos e ameaças, que passamos a ter razão. E, certamente não será pela via do silenciamento das instituições que lá se chegará. Precisamos de um inquérito imparcial, competente e livre, para apurar as circunstâncias, as envolventes, os implicados e as responsabilidades de cada entidade nessa ocorrência.
E mais, Senhor Presidente, o artº. 94, nº 1 da Constituição da República diz claramente que, a ANP não pode ser dissolvida nos 12 meses posteriores à eleição, pelo que ao forçar esse pronunciamento, ele será nulo e inexistente. Não poderá se desvencilhar desta ANP, se não pela via de mais um crime contra a soberania deste país, e se tal acontecer, o povo estará convocado a vir à rua repor a democracia.
E eis que chegamos a questão existencial que todo o homem digno um dia enfrenta. Churchill, um nome grande da cultura política universal disse ter medo, ao sentir-se colocado perante a escolha entre o seu partido e a democracia, entre a sua Inglaterra e o que lhe era mais conveniente. A sua escolha de há séculos, salvou o modelo que hoje ainda se celebra como o melhor de todos os conhecidos e experimentados.
Agora é a nossa vez, em nome e em representação do nosso povo, escolher entre o conformismo ou a verdade, entre sim senhor e a defesa do bem-estar desta população, a justiça, a paz, e a estabilidade, para que, finalmente este país encontre a felicidade.
Não tenhamos medo da violência, pois onde ela mora, é geralmente porque a verdade e a razão moram bem longe. Devemos esta postura e repúdio do medo, à nossa condição de homens, aos muitos inocentes deste processo macabro. É chegado o momento de enfrentar a realidade e fazer o que está certo.
Dizer a todos os que queiram ouvir que, até Fevereiro de 2025 decorre o mandato do Presidente, mas nesta data outro deverá entrar em funções; que as instituições têm de funcionar regular e tranquilamente por forma a produzirem a riqueza de que os guineenses precisam para viverem melhor; dizer a todos os amigos de fora que têm de deixar a Guiné-Bissau respirar. As feridas eventualmente mal sarradas da descolonização ou outros negócios posteriores, esses não podem durar para sempre e manter este povo no cativeiro ad eternum.
A responsabilidade da ANP em prosseguir a sua missão histórica nesta legislatura, não pode depender da vontade de um ou de uns poucos, mas conforme o preceituado na lei que deve ser respeitada por todos. E, esse todos, inclui a Comunidade Internacional parceira que tem de respeitar o modelo escolhido por este povo e deixá-lo seguir o seu caminho.
Ao povo, lembrar que, as conquistas nunca são dádivas, mas produtos de uma luta árdua e determinada, que convoca permanentemente a todos, sem medo de nada nem hesitações.
Ergamo-nos para a defesa das nossas conquistas e direitos.
Viva a democracia
Viva o povo guineense.
Que Deus nos abençoe.