O exemplo de Eduany, dado a conhecer em setembro por Record, é o ponto de partida para um grito de alerta de Catió Baldé sobre a situação dos jovens africanos provenientes das ex-colónias portuguesas no futebol de formação em Portugal, relativamente à inscrição na FPF e à lei da nacionalidade que dá acesso às seleções. “O Eduany é um caso paradigmático. É um miúdo angolano que esteve 5 anos à espera da estreia oficial. Chegou aos 13 anos ao Vilafranquense e só fez o primeiro jogo aos 18 devido a este imbróglio burocrático. Não podia ser inscrito porque não tinha tutor.”
Em declarações a Record, o empresário lamenta que “muitos provavelmente não se dão conta do que está a acontecer.” “Mas é preciso denunciar abertamente este tema, que me indigna. O que se está a passar em Portugal na área da formação é um drama para os jovens dos PALOP e das ex-colónias portugueses, de países como Angola, Guiné-Bissau, São Tomé e Príncipe, Cabo Verde e Moçambique”, denuncia, certo de que o futebol está a pagar o preço de quem promove o tráfico de menores. “A FIFA teve de tomar uma série de medidas, porque pessoas com poucos escrúpulos trouxeram jovens africanos para a Europa e muitos deles acabaram por ser abandonados, principalmente na Bélgica, em França ou na Holanda. É por isso que hoje em dia a lei obriga à maioridade ou à presença do pai ou da mãe. Há jovens africanos a procurarem oportunidades na Europa noutras áreas – na escola, na música, noutras atividades – mas tudo o que tem a ver com o futebol foi diabolizado. Criou-se um ambiente de alarme social que veio prejudicar os jovens jogadores africanos”, interpreta.
Eduany esteve 5 anos à espera da estreia oficial
“Há inúmeros jovens sem competir porque não são autorizados”
No caso concreto das inscrições, Baldé refere que, “em Portugal, um jogador menor que não nasceu na Europa ou cujos pais não têm os documentos de nacionalidade portuguesa, só pode ser inscrito quando atinge a maioridade.”
E dá exemplos de como essa realidade, do seu ponto de vista, prejudica muitos jogadores. “Um jovem de 13 anos, filho de emigrantes em Portugal, chega vindo de África e o pai ainda está à espera de obter nacionalidade; esses processos demoram de 2 a 3 anos. Pois bem, esse jovem tem de esperar e só se pode candidatar à nacionalidade através do pai; e depois fica à espera mais 2 ou 3 anos. Ou seja, jovens dessas idades com talento não são autorizados a competir. Nalguns casos, o jogador atinge a maioridade e a decisão do processo de nacionalidade ainda não saiu. Ou sai quando ele já tem 17 anos. E quem perde estes anos de formação já dificilmente chegará a profissional. Não imaginam quantos jovens dos PALOP há nesta situação, alguns que já abandonaram o sonho de jogar futebol, porque tiveram de esperar 3/4 anos para serem inscritos e a Federação não aceita. Não imaginam quantos jovens temos à espera de autorizações da FIFA”, aponta o agente, para quem não faz sentido ser a FIFA a decidir algo que poderia estar dentro das competências da FPF, assim existisse compreensão para com este problema.
“A inscrição é feita cá através dos clubes que a remetem à FPF e daqui segue para a FIFA. E a FIFA autoriza com base nos documentos enviados de Portugal: comprovativos de matrícula escolar, de inscrição num centro de saúde, de número fiscal, de morada dos pais, de emprego dos pais, de vacinação regularizada… É a FIFA que analisa e aprova a inscrição aqui. Isto é patético! Então, a Federação não tem competência para o fazer?!? É uma contradição. De um lado, a lei portuguesa obriga à matrícula do jovem numa escola pública e ao acesso a cuidados de saúde; do outro, a Federação não autoriza que ele seja inscrito para competir. Porquê, se há provas de que o miúdo está a estudar e pertence a um agregado familiar, seja dos pais biológicos, seja de um parente próximo, com procuração ou até tutela?”, questiona. “É isto que me indigna. Vejam o que está a acontecer nos clubes da periferia de Lisboa. Há inúmeros jovens sem competir, porque não são autorizados”, reforça.
Perante esta realidade, Catió Baldé interroga se “o presidente da Federação, Fernando Gomes, sabe do drama destes jogadores africanos?” “Se o Estado aceita a inscrição na escola com base numa procuração, porque é que a mesma procuração não vale para o futebol? Se estes jovens podem fazer desporto na escola, então porque não podem ser inscritos para fins associativos ou federativos? É inconcebível. A Federação é um mundo à parte? É este o drama dos jovens dos PALOP em Portugal. E é preciso denunciá-lo. Esta lei, além de ser injusta, e não quero chamar-lhe outro nome, está a prejudicar seriamente os nossos jovens dos PALOP, a quem a competição está vedada. É uma lei cega, patética e cruel”, classifica, remetendo também para as especificidades da lei de Reagrupamento Familiar. “Porque há muitos jovens que, não tendo cá o pai ou a mãe, vieram para Portugal ao abrigo dessa lei e estão ao cuidado de familiares. Apelo a Fernando Gomes e a José Couceiro para que olhem para este drama e facilitem a inscrição destes jovens, mesmo que possa ser provisória. Para não perderem anos inteiros de formação, para terem as mesmas oportunidades dos colegas que nasceram em Portugal, para não serem marginalizados.”
Um jogador do Benfica e outro do Sporting “riscados” de convocatórias
No acesso às seleções nacionais, Catió Baldé revela dois casos concretos, relativos a um jogador do Benfica e a outro do Sporting, que terão sido excluídos de convocatórias. “Porque a Federação desde há dois meses está a aplicar uma nova lei da nacionalidade que considero injusta e incoerente. Até aí qualquer cidadão dos PALOP que obtivesse a nacionalidade portuguesa teria, de imediato, o mesmo direito de servir o país. Agora só pode representar as seleções, mesmo sendo português, quem for capaz de provar que já reside em Portugal há 5 anos. Há jovens, filhos de portugueses, que chegam a Portugal já com a nacionalidade portuguesa, porque os pais deram entrada com os processos nas embaixadas. Um jovem nessa situação, mesmo chegando já como português, tem de residir em Portugal 5 anos para poder representar as seleções nacionais em qualquer escalão”, explica o empresário guineense.
Empresário deu como exemplo o caso de Vladimir Mendes
“Dou um exemplo. Vladimir Mendes, um jovem de 17 anos, que se transferiu do Belenenses para o Benfica esta época. Ele tem nacionalidade portuguesa há 4 meses mas na contagem do período de residência em Portugal falta-lhe 1 ano para ele cumprir o requisito. Só a partir daí é que ele pode competir pelas seleções. Ele foi chamado à seleção sub-17 e foi riscado, porque não completava o requisito dos 5 anos. Porquê, se já e português? Outro exemplo: Fernando Sadjo Baldé, do Sporting. Foi pré-convocado para a seleção sub-16 mas, como tem pouco mais de um ano de residência em Portugal, não pôde ir. No caso dele, faltam-lhe quase três anos e meio para completar os 5 anos obrigatórios. Já é português mas isso não chega. Isto é incrível”, entende.
Revoltado, Baldé avisa que haverá consequências para as seleções nacionais no futuro. “Estão a matar o sonho de muitos jovens. E não venham dizer que é vitimização com o racismo. São factos. Estou a preparar, em conjunto com o meu advogado, uma exposição que farei chegar na altura própria ao presidente da Federação para denunciar esta situação que é grave.”
Fernando Sadjo Baldé, do Sporting, também passa por idêntica situação
“Já aconteceu ver nas seleções um onze com seis jogadores nascidos em África. Lembro-me dos Mundiais da Colômbia, da Turquia, de vários Europeus… Provavelmente, alguém não gostou disso e introduziu esta lei para prejudicar os jovens africanos dos PALOP. Está a fazê-lo de forma intencional e calculada. Eu pergunto: nos próximos anos vamos ter os Danilo, os William, os João Mário, os Bruma, os Jorge Andrade, os Abel Xavier? Vamos? Não. Olhem para a seleção de futsal, campeã do Mundo; de onde vieram aqueles jogadores africanos? Ou o Éder; de onde veio o Éder? Porquê então vedar o caminho a estes miúdos dos PALOP? Em Espanha convocaram um Conselho de Ministros para conceder a nacionalidade ao Ansu Fati… Apelo mais uma vez a Fernando Gomes e a José Couceiro para que acabem com esta lei que é injusta e incoerente”, conclui.